PITTER LUCENA

Jornalista acreano radicado em Brasília

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segunda-feira, junho 04, 2012

CAGADA NO CONGA

Lembrar disso cheira a merda. Mas como tenho que retratar o assunto é melhor ir direto a ele. Quando menino a gente passa por muitas situações que, na maioria delas, achamos melhor esquecer. Mas como esquecer de uma cagada no sapato que a gente mais gosta? É difícil mas vou retratar em detalhes o que ocorreu, sem o cheiro é claro.

Ao chegar em casa, morava às margens do igarapé Judia, corri logo para as mangueiras que ficavam a menos de 500 metros. Fui de conga, sapato que todo pobre queria um. Não era um conga qualquer: era um conga Alcollor, lindo de morrer. Na realidade os Alcollors eram todos iguais, mas para quem estava dentro de um deles era o moleque do momento, lindo, o cara, o dono da cocada preta.

Olhei para cima e vi uma manga pitel, pense numa pitel, daquelas que mulher buchuda derruba só com o olhar de tanto desejo. A mangueira, a mãe da manga pitel era enorme, mas minha conhecida de velhos tempos. Sabia como escalá-la sem problemas e, aquela manga bem rosinha, brilhando com os raios do sol batendo entre uma folha e outra, estava em minha boca. Estava ela (a manga) na ponta de um galho muito alto, bem alto, que só um artista que nem eu sabia como buscá-la.

Observei ao redor, não havia ninguém para atrapalhar naquela empreitada. Tirei o meu lindo sapato que havia duas semanas chegado à mim, com um medo danado de alguém levá-lo enquanto estava trepado na mangueira. A árvore de tronco forte de uns 100 anos devia ter uns 30 metros de altura, não era problema e comecei a subir, pega aqui, pega ali e vou indo tranqüilo, até cantarolando alguma coisa. Para o meu espanto comecei a ouvir vozes.

Eram três garotos conhecidos meus, filhos de papai, (por assim dizer) gente rica que andava pelo mangueiral para se divertir, aprontar e aprontar. Eu, lá em cima no olho da mangueira, olhava com preocupação o que se passava lá embaixo. Meu querido conga estava lá no pé da mangueira, porque subir de sapato escorrega e é perigoso cair de certa altura. Deus meu, eles fizeram o inimaginável.

Eu, trepado, os via. Eles embaixo não viam nada de quem estava em cima. Começaram a orgia, sacanagem pura, falando alto e em bom tom de como um imbecil havia deixado um conga novinho em folha no pé de mangueira (eles usavam All Star). Para sacanear, eles eram espertos nisso, mijaram no conga por simples prazer. Encheram o coitado de líquido e, eu, lá em cima, sem poder dizer nada: eram três contra um.

A manga, a pitel que havia sonhado em comer, estava na mão. Mas o pesadelo havia se instalado nesse ínterim em pensar no que fazer. Nada, nada, nada. Meu conga, meu sonho de consumo, estava a deriva, não havia como salvá-lo naquele momento. E os caras rindo da minha cara. Feito estátua trepada no olho da mangueira, fiquei a assistir o fim do ato insano dos garotos sem coração de mãe.

Sem o mínimo de pudor, vergonha ou coisa do tipo, cagaram no meu conga sem vergonha e sem pudor. Saíram rindo como se estivessem saídos do circo, alegres e saltitantes. Eu, lá em cima, assistia um show de terror: meu conga allcolor estava recheado de merda. Meu sonho em ir a boateca no final de semana havia mudado, meus amigos também veriam que meu sapato havia mudado de cor, mas fazer o quê?

Ao chegar embaixo da mangueira vi, o que meus olhos um dia a terra à de comer, a coisa mais feia da vida. Merda. Muita merda. Mas, como brasileiro desde pequeno, levei o conga para o rio, lavei, lavei e, hoje continuo lavado para os sujos que tentam sujar a vida dos outros. O conga, depois de lavado, continuou o mesmo, não afrouxou nem apertou. O que aperta na vida, depois entendi, é ser frouxo para a vida.

domingo, junho 03, 2012

MANGA COM LEITE

A memória da gente é uma coisa muito engraçada. Tem situações vividas que achamos que esquecemos mas um dia, seja lá que dia for, elas voltam como num passe de mágica. Algumas para nos alegrar, outras para nos fazer rir de nós mesmo. Num dia desses me veio à lembrança de uma presepada que aconteceu comigo quando tinha uns oito ou nove anos de idade. Por nunca ter contado essa história para ninguém, acredito que por isso essas recordações ficaram guardadas, muito bem guardadas na minha cachola.

Não sei por que cargas d`água me lembrei da mistura de manga com leite, uma composição que, segundo meus pais, era morte certa. Isso era exigido por eles para nunca cometer tal desatino. Mas não foi isso o que aconteceu. Sem querer é claro, num dia de má sorte e total esquecimento das ordens severas de nunca fazer tamanha misturança mortal. Foi um erro de criança, mas, com efeito, depois da merda feita, tudo podia acontecer. Naquele fatídico dia não cresci, parei no tempo, vi minha vida escorrendo pelos meus dedos.

Logo cedo sai de casa para a escola como fazia de segunda a sexta. Andava mais de três quilômetros para chegar à casa do saber. Um dia normal até então. Na hora da merenda, muitas vezes ia para a aula por causa dela (a merenda), a cozinheira me ofereceu um pouco de leite que havia sobrado. Não contei pipoca e de solapão peguei o caneco com o precioso liquido branco e glut, glut, glut. Estava satisfeito. Além da merenda de jabá com arroz e amendoim ainda um leitinho para minha felicidade.

Terminada a aula todo mundo para casa. Fui eu pululando de alegria. Ao chegar em meu doce casebre de madeira corri em linha reta para os pés de mangas, hábito que fazia quase todos os dias. De início derrubei logo uma “diveiz”, estágio entre a manga verde e madura. No pé da mangueira havia sal escondido na própria árvore como se ela fosse minha cúmplice. Pense numa fruta deliciosa e, eu, devorando-a sem pecado e sem juízo.

Mas, como tudo que é bom duro pouco, começou o meu tormento existencial. Lembrei do leite da escola branquinho e gostoso descendo goela abaixo e, naquele exato momento, da manga “divez” que havia entrado também para o mesmo destino. De imediato um calafrio chegou não sei de onde, descendo pela a espinhela até os dedos dos pés e não sabia direito o que fazer. De uma coisa eu tinha certeza: a morte me olhava naquele instante com um sorriso no canto da boca.

A vontade momentânea foi de vomitar a manga, até então saborosa, mas quem disse que ela saia com a sofreguidão e força de meus pequenos dedos. O desespero foi aumentando, aumentando e começava a suar frio. Era uma mistura doida em meu corpo de quente e frio ao mesmo tempo. Não conseguia pensar direito no que fazer para desfazer o problema que havia se instalado dentro de mim. Vou morrer, vou morrer, pensava segundo a segundo.

Ainda debaixo do pé de manga eu não tinha nenhuma vontade de ir para casa. Meu aparente estado físico acabaria revelando que havia feito algo grave e minha mãe, com certeza, iria saber e contar para o meu pai. Ai sim seria outra morte anunciada porque havia desobedecido as ordens dele. Que loucura meu Deus e o que fazer agora? Se meu pai soubesse me daria uma surra daquelas e, como eu já estava com o pé na cova, achei melhor suspender a peia que levaria no lombo. Duas coisas ruins ao mesmo tempo era demais para mim: Apanhar e depois morrer. Não isso não. Vou morrer sem surra de cinturão. Pensei.

Voltei para casa cabisbaixo, arrasado, mais prá baixo do que apartamento de minhoca. Minha mãe percebeu mas neguei qualquer coisa de ruim comigo. Tirei a farda da escola e voltei para o mato. Fiquei lá matutando porque a minha pobre e inocente vida iria ter fim antes dos 10 anos de idade. Penso prá cá, penso prá lá e tive outra idéia: e se soltar por baixo essa mistura insana? Daria certo? Não morreria?

Corri então para o pau-da-gata, cagador ou, melhor dizendo, sanitário ao ar livre para fazer força e expulsar a minha criação de Rosemeire. Dentro de mim fervilhava o embrião morto da morte que a mãe viria buscá-lo antes do nascer do sol. Solitário com a foice rondando minha cabeça, força não faltava para eliminar o pecado cometido nas últimas três horas de vida. Nada, nada, nada. Me contaram, certa vez, que se colocasse uma folha verde na cabeça tudo descia com facilidade. Ajustei o pensamento positivo e sai catando folhas: coloquei mais de dez, parecia um bicho folharal e nescasdepitibiriba. Nem por cima nem por baixo saia alguma coisa que alimentasse alguma esperança de continuar nesse mundo de meu Deus.

Não chorava uma lágrima porque homem não chora, diziam os mais velhos, viva e morra com honra, esse era o lema. A peia do meu pai, pensava eu, talvez fosse pior do que a morte e, como já estava sentenciado, o fim era eminente, não havia escapatória. Como estava há tempo muito no mato, ouvir o chamado de mamãe querendo saber o que estava acontecendo. Sai do refúgio mortuário, assim tipo amarelo empombado, com as pernas bambas e o suor descendo pelo rosto de tanto fazer força para mandar prá fora a tirania do meu destino.

Ao tocar em meu corpo mamãe gritou: menino você está com febre alta e vamos já para debaixo do cobertor. Minha loucura, sozinho, provocou febre e vertigens passageiras que não poderia contar para ela o meu sofrimento. Lá pelas seis da tarde, suando mais do que tampa de chaleira, meu pai chegou e perguntou o que acontecia comigo. Ela explicou e tudo ficou bem, graças a Deus, era apenas febre. Mas naquele catre eu via minha vida saindo de mim aos pouquinhos, isso porque depois de tanta força estava mais fraco do que caldo de piaba.

Quando a noite chegou piorou a chance de viver. Não jantei nada e fui para minha rede na certeza que daria meus últimos suspiros. Atordoado, confuso e fraco, deitei-me na rede e pedir que a única lamparina da casa me iluminasse naqueles instantes finais. Minha mãe achou tudo isso estranho mas atendeu meu pedido. Fiquei a olhar o telhado de cavaco da velha casa, observei a janela aberta e senti uma leve brisa aterrissando sobre o meu ser moribundo. Pensei que era chegada a hora. Que nada, me refrescou a lucidez naquele momento de pura insensatez.

Papai e mamãe dormiram e, eu, só. Mas outra idéia me veio à cabeça: se não dormisse, se ficasse acordado até o dia amanhecer? Escaparia das mãos da dona morte? Pensei nessa possibilidade e me apeguei a todos os santos, fiz promessas que não lembro, mas garantir a mim mesmo de que não dormiria naquela noite para pagar o meu pecado de ter comido manga com leite. De madrugada meu pai foi ver comigo e disse que eu estava ficando doido, abirobado. Deixa ele, pensei comigo mesmo. Se ele soubesse...

Nessa incansável luta pela vida que havia se travado dentro de mim, adormeci, ou melhor, morri de sono e cansaço.

FOTOS PITTER LUCENA