A FÁBULA DA VACA DOIDINHA
Cláudio Mota Porfiro*
Ali pelas imediações do bairro Cerâmica, há um certo estabelecimento do ramo da cerveja carinhosamente apelidado pelo próprio dono, o Bar do Bigode. Trata-se de uma espécie de remanso por onde navegam e pululam bichos de escama, de couro e, até, alguns de casco. É um tipo de floresta cuja fauna se compõe de espécimes raros cujos corpos são cobertos de pêlos, outros de pena e alguns poucos que desmunhecam à luz da lua, em meio ao pileque. Sexta-feira passada, então, contei, entre todos, trinta e oito metidos a machos, entre animais domésticos, selvagens e até uns peçonhentos. Uma beleza!
Ali por perto daquela antiga serra, passa boi, passa boiada, passa até a véia Diva com a filha embriagada... De vez em quando, também, tira a maior onda pelo meio da recuca um sujeito bonachão chamado Ademar Pessoa Martins - o grande Pessoa - tido e havido como homem educado, cortês, ponderado, pausado na conversa e no canto lírico, bom português... Um bacana!
O grande Pessoa é daqueles espécimes irrequietos que nasceu no Maranhão, foi menino e moço em Araguaína, Tocantins; trabalhou de radialista em São Paulo, de segurança de supermercado no Acre, vendeu sapatos e ações da bolsa não-sei-de-quem, pintou, bordou, deitou, rolou e - imagine! - durante um bom tempo, foi garimpeiro ali pelas proximidades distantes de Ariquemes, Rondônia, terra de homem honrado e mulher de vergonha... É dessa época, então, a fábula pitoresca que vos passo a narrar.
Caminhando rumo ao horizonte sombrio, seguia cantando e dançando, muitas vezes sob chuva torrencial, a vidinha pacata da hiléia verde. Vez por outra, numa esquina qualquer da mata, cavalheirescamente, o macaco prego dava bom dia à onça pintada e esta ronronava como se já lhe estivesse a degustar as tripas grossas e as finas, além do resto do primata que é só músculo tenro e chã de fora arqueada.
Certa vez, então, cheguei à rodoviária de Ariquemes e o motorista do velho e empoeirado ônibus rugiu ou rosnou:
- Ariquemes! Quem tem coragem? Ao que uma moçoila magérrima levantou o dedinho indicador e disse:
- Eu. Por quê? Sou dama da noite e vim para ganhar a vida. Ora bolas!
Desci para almoçar mas, antes, dei uma olhadela investigativa para o arremedo de sanitário que estava alagado de todos os dejetos que o ser humano tem condições de colocar pra fora, de expelir... Também, pudera! Era domingo e aquela zona estava infestada de garimpeiros e meliantes de todos os naipes do baralho do puteiro.
Era 1988 e, por essa época, habitava a região o nobre Pessoa, um impávido colosso da era do Jurassic Park.
Ademar Pessoa, o cavalheiro andante, morava numa fazenda grande onde fazia de tudo um pouco e, às vezes, garimpava pepitas de ouro maciço. Ali bem próximo ainda hoje está localizado o garimpo do Periquito, àquela época, ainda dando asas à imaginação de alguns garimpeiros de quem o nosso herói era amigo de longa data, em boa parte dos casos.
Então, era sexta-feira de tarde. Na fazenda, o serviço quase se acabara. No garimpo, a rapaziada já estava sentada sob os sacos de areia retirados da velha mina. E haja proeza! E tome-lhe valentia! (Ô povo pra mentir!) Mas, no resumo, tudo era só animação! Dali a pouco se encontrariam com os peões da fazenda.
Mas tinha um porém. Por aquelas redondezas quadradas, era terminantemente proibida a ingestão das alcoólicas. Em outras palavras: a mardita não podia ser tragada ou tomada de jeito nenhum, sob nenhum pretexto ou justificativa.
Mas já estavam todos reunidos e um dos mais santos deu a idéia genial:
- Ora, senhores do conselho e da nata da rapiocagem! Iremos todos ali no aceiro do mato e cortaremos alguns cipós jagube, que tem muito, e voltaremos. Em seguida, vamos bater o cipó, colocar no canjirão e botar pra ferver em fogo alto que é pra apurar melhor.
Ora, o grande mentecapto foi ovacionado pela horda mais feliz do mundo.
Em seguida, já era manhãzinha e o imenso panelão de barro foi colocado à beira da paxiúba para esfriar. Só depois de frio é que o mariri energético poderia ser tomado, é claro. Mas os rapazes, antes, foram bater um futebol pra lá de arriscado, em vista de revólveres e peixeiras em número significativo. E a pelada comeu solta. Do pescoço pra baixo era tudo canela. Não tinha falta porque ninguém tinha coragem de marcar uma simples perna quebrada...
Entrementes, aí pelo meio da manhã, uma vaquinha muito da sua mimada, como quem não tem o que fazer e já fazendo, vagarosamente, se acercou do canjirão do mariri que estava no assoalho à altura da cabeça da dita cuja. Ela cheirou, se agradou e mandou a bocarra, com força. Enfim, ainda não satisfeita, lambeu o fundo da vasilha e a tombou pra debaixo do barraco... E saiu... Foi-se...
Daí a pouco, chegou a rapaziada... Uns vinte e tantos. O Pessoa, herói desta fábula, foi quem primeiro notou o estrago, fruto do sacrifício de quase duas horas de esforço dentro do mato cortando jagube.
- Puta merda! O que foi que aconteceu com a nossa bebida? Pelo amor de Deus!
Todos, então, ouviram um mugido quase solene. Em seguida, a vaca apareceu saída de uma capoeira próxima.
Segundo o Pessoa, a bicha vinha quase em marcha, mas em ritmo lento demais. O rabo estava teso, duro, no rumo de trás, na horizontal, como se apontasse pra algum lugar. O andar da vaca era de tal forma que mais parecia que ela tinha acabado de fazer as unhas. E fazia múuuuuuuuu, agudo em sustenido. Pra completar, ela parou próximo ao local onde tinha ficado o canjirão cheio, deitou o queixo na paxiúba e ficou ali por mais de uma hora lambendo os beiços e revirando os olhos como se estivesse pedindo mais mariri.
Esta e outras fábulas fazem parte do repertório variado dos poetas e outros bichos que aparecem no Bar do Bigode. A qualquer hora dessas, o dono do boteco, amante das artes e da orgia, haverá de financiar uma edição completa de um grande compêndio que virá a ser o resumo desta fase das nossas vidas a que eu tenho a honra de denominar a era bigodiana.
*Cronista acreano
Ali pelas imediações do bairro Cerâmica, há um certo estabelecimento do ramo da cerveja carinhosamente apelidado pelo próprio dono, o Bar do Bigode. Trata-se de uma espécie de remanso por onde navegam e pululam bichos de escama, de couro e, até, alguns de casco. É um tipo de floresta cuja fauna se compõe de espécimes raros cujos corpos são cobertos de pêlos, outros de pena e alguns poucos que desmunhecam à luz da lua, em meio ao pileque. Sexta-feira passada, então, contei, entre todos, trinta e oito metidos a machos, entre animais domésticos, selvagens e até uns peçonhentos. Uma beleza!
Ali por perto daquela antiga serra, passa boi, passa boiada, passa até a véia Diva com a filha embriagada... De vez em quando, também, tira a maior onda pelo meio da recuca um sujeito bonachão chamado Ademar Pessoa Martins - o grande Pessoa - tido e havido como homem educado, cortês, ponderado, pausado na conversa e no canto lírico, bom português... Um bacana!
O grande Pessoa é daqueles espécimes irrequietos que nasceu no Maranhão, foi menino e moço em Araguaína, Tocantins; trabalhou de radialista em São Paulo, de segurança de supermercado no Acre, vendeu sapatos e ações da bolsa não-sei-de-quem, pintou, bordou, deitou, rolou e - imagine! - durante um bom tempo, foi garimpeiro ali pelas proximidades distantes de Ariquemes, Rondônia, terra de homem honrado e mulher de vergonha... É dessa época, então, a fábula pitoresca que vos passo a narrar.
Caminhando rumo ao horizonte sombrio, seguia cantando e dançando, muitas vezes sob chuva torrencial, a vidinha pacata da hiléia verde. Vez por outra, numa esquina qualquer da mata, cavalheirescamente, o macaco prego dava bom dia à onça pintada e esta ronronava como se já lhe estivesse a degustar as tripas grossas e as finas, além do resto do primata que é só músculo tenro e chã de fora arqueada.
Certa vez, então, cheguei à rodoviária de Ariquemes e o motorista do velho e empoeirado ônibus rugiu ou rosnou:
- Ariquemes! Quem tem coragem? Ao que uma moçoila magérrima levantou o dedinho indicador e disse:
- Eu. Por quê? Sou dama da noite e vim para ganhar a vida. Ora bolas!
Desci para almoçar mas, antes, dei uma olhadela investigativa para o arremedo de sanitário que estava alagado de todos os dejetos que o ser humano tem condições de colocar pra fora, de expelir... Também, pudera! Era domingo e aquela zona estava infestada de garimpeiros e meliantes de todos os naipes do baralho do puteiro.
Era 1988 e, por essa época, habitava a região o nobre Pessoa, um impávido colosso da era do Jurassic Park.
Ademar Pessoa, o cavalheiro andante, morava numa fazenda grande onde fazia de tudo um pouco e, às vezes, garimpava pepitas de ouro maciço. Ali bem próximo ainda hoje está localizado o garimpo do Periquito, àquela época, ainda dando asas à imaginação de alguns garimpeiros de quem o nosso herói era amigo de longa data, em boa parte dos casos.
Então, era sexta-feira de tarde. Na fazenda, o serviço quase se acabara. No garimpo, a rapaziada já estava sentada sob os sacos de areia retirados da velha mina. E haja proeza! E tome-lhe valentia! (Ô povo pra mentir!) Mas, no resumo, tudo era só animação! Dali a pouco se encontrariam com os peões da fazenda.
Mas tinha um porém. Por aquelas redondezas quadradas, era terminantemente proibida a ingestão das alcoólicas. Em outras palavras: a mardita não podia ser tragada ou tomada de jeito nenhum, sob nenhum pretexto ou justificativa.
Mas já estavam todos reunidos e um dos mais santos deu a idéia genial:
- Ora, senhores do conselho e da nata da rapiocagem! Iremos todos ali no aceiro do mato e cortaremos alguns cipós jagube, que tem muito, e voltaremos. Em seguida, vamos bater o cipó, colocar no canjirão e botar pra ferver em fogo alto que é pra apurar melhor.
Ora, o grande mentecapto foi ovacionado pela horda mais feliz do mundo.
Em seguida, já era manhãzinha e o imenso panelão de barro foi colocado à beira da paxiúba para esfriar. Só depois de frio é que o mariri energético poderia ser tomado, é claro. Mas os rapazes, antes, foram bater um futebol pra lá de arriscado, em vista de revólveres e peixeiras em número significativo. E a pelada comeu solta. Do pescoço pra baixo era tudo canela. Não tinha falta porque ninguém tinha coragem de marcar uma simples perna quebrada...
Entrementes, aí pelo meio da manhã, uma vaquinha muito da sua mimada, como quem não tem o que fazer e já fazendo, vagarosamente, se acercou do canjirão do mariri que estava no assoalho à altura da cabeça da dita cuja. Ela cheirou, se agradou e mandou a bocarra, com força. Enfim, ainda não satisfeita, lambeu o fundo da vasilha e a tombou pra debaixo do barraco... E saiu... Foi-se...
Daí a pouco, chegou a rapaziada... Uns vinte e tantos. O Pessoa, herói desta fábula, foi quem primeiro notou o estrago, fruto do sacrifício de quase duas horas de esforço dentro do mato cortando jagube.
- Puta merda! O que foi que aconteceu com a nossa bebida? Pelo amor de Deus!
Todos, então, ouviram um mugido quase solene. Em seguida, a vaca apareceu saída de uma capoeira próxima.
Segundo o Pessoa, a bicha vinha quase em marcha, mas em ritmo lento demais. O rabo estava teso, duro, no rumo de trás, na horizontal, como se apontasse pra algum lugar. O andar da vaca era de tal forma que mais parecia que ela tinha acabado de fazer as unhas. E fazia múuuuuuuuu, agudo em sustenido. Pra completar, ela parou próximo ao local onde tinha ficado o canjirão cheio, deitou o queixo na paxiúba e ficou ali por mais de uma hora lambendo os beiços e revirando os olhos como se estivesse pedindo mais mariri.
Esta e outras fábulas fazem parte do repertório variado dos poetas e outros bichos que aparecem no Bar do Bigode. A qualquer hora dessas, o dono do boteco, amante das artes e da orgia, haverá de financiar uma edição completa de um grande compêndio que virá a ser o resumo desta fase das nossas vidas a que eu tenho a honra de denominar a era bigodiana.
*Cronista acreano
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