PITTER LUCENA

Jornalista acreano radicado em Brasília

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sexta-feira, julho 14, 2006

QUIS VOAR E VOEI

O ano era 1987. Ainda com 20 e poucos anos, época que não existiam telefone celular e internet, vivia eu sobre a ponte do mudar o mundo pelo conhecimento através da leitura e, também, pela força e a luta armada. O Brasil acabava de sair das amarras da Ditadura Militar, começando a passar para uma nova fase ainda desconhecida por mim e por milhões de jovens que não tinham alcançado aos 30 anos de vida neste vale de lágrima.

E, foi nessa turbulência política que fui convidado para ser mais radical do que já era. Aceitei sem pestanejar. Entrei para o clube da adrenalina, ou seja, um clube de pára-quedismo onde mais do que a vontade de mudar a realidade naquela década, queria aprender a voar. Voar como um passarinho e gritar meu grito de rebeldia, meu grito de liberdade que estava preso no peito desde o tempo de caserna ao qual fui submetido em 1984.

Buscava pelas discussões políticas e pela adrenalina uma nova forma de viver. Nesse caminho de buscas fui aprendendo que viver é mais importante do que tentar mudar o mundo. O mundo não muda quem muda são as pessoas.

Depois de três meses de treinamento me preparei para o grande dia. O dia que ficou marcado na mente de um sujeito pirado pelo perigo e amante das boas coisas da vida. Aliás, acredito que só os loucos têm consciência do sentido da verdadeira felicidade. Erasmo de Roterdam escreveu que a vida não tem sentido sem a loucura. Ele tem razão.

Era um domingo. Estávamos ansiosos para voar. Depois de checar todos os equipamentos, inclusive os de seguranças, começamos a preparação que nos tornaria homens-pássaro, mesmo que fosse por poucos segundos. Não importava mais nada. No peito o coração batia forte, acelerado, algo parecido com um princípio de taquicardia.

Ao entrar num avião sem portas e sem cadeiras o silêncio dos iniciantes do pára-quedismo era uma oração. Éramos quatro para o primeiro salto mais o lançador e o piloto que adoravam deixar a galera em pânico. O piloto gostava de “ajeitar” a carga, isto é, depois de certa altura virava o avião com a porta para baixo deixando todos com o coração na boca. O medo era de cair do avião na hora errada e descer longe do alvo marcado na pista de barro a mais de mil metros abaixo de nós.

No avião mais uma surpresa. Um dos iniciantes ao esporte radical nunca havia entrado numa aeronave. Além disso, havia enganado o instrutor omitindo que estava com malária. A emoção para ele era muito maior. Avião subindo, o piloto brincando de fazer piruetas no ar e o meu amigo passando mal. Estava mais amarelo do que folha de açafrão.

Chegando a altura certa começamos o procedimento de salto. Estando eu na porta, portanto sendo o primeiro a descer, comecei a pensar sobre as possibilidades daquela geringonça não abrir e me acabar no chão. Já fora do avião, pisando sobre o pneu dianteiro, um vento muito forte forçava o desequilíbrio do meu corpo. Foi nesses momentos de medo que comecei a pensar sobre a beleza da vida. Meus sentimentos estavam divididos: por um lado sentia medo, por outro prazer. Um prazer grandioso que não se consegue descrever em palavras.

Quando o instrutor deu a ordem para o salto: “agora, vai e te fode”, virei um passarinho. Estava eu voando, sozinho na imensidão do céu. Depois da rápida queda livre, verifiquei se tudo estava em ordem: velame, batoques e estirantes.

A descida e a navegação são momentos de prazer e emoção. Um silêncio sem igual invadiu meu ser. Não havia nada em todas as direções, apenas eu e eu brincando de voar. O tempo que fiquei curtindo a lei da gravidade, menos de cinco minutos, pareceu uma eternidade.

Lá de cima pude ver um mundo diferente. Foi exatamente lá em cima que filosofei, lembrando que no princípio era o nada. Onde e quando não cabiam o princípio e o nada. No fim será o nada. Onde e quando não caberão o fim e o nada.

E, descendo lembrei que a lucidez nos leva às raias da loucura. Não tenho medo. Apenas fico feliz ao saber que, como são felizes os irracionais. Eles não sabem o que fazem. Não temem a loucura. Voei alto. Coloquei asas e parti para a luz.

Atravesso todo o firmamento, alcanço a estrela mais distante e vôo ao redor do universo. Atinge-se o infinito e dele retornamos e recomeçamos tudo novamente. Os ponteiros do tempo param. De repente minhas costas se abrem e surgem novas asas para voar novamente. Quis voar mais alto e voei.

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